terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

#15

Parei de escrever uns dias, você percebeu. Não é que falte cotidiano, na verdade sobra. A fertilidade fugindo de umas a outras plantações.

- Algumas nuvens vão se dissolvendo, outras chovem, eu escorro até o chão. Já sou mais densa que o ar. Vendo-as mais de longe, percebo que o material das nuvens é a palavra. Na sua dissolução, as letras vão se desgarrando, formando anagramas, e de repente são apenas sílabas, depois figuras, depois abstratos, depois nada.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

#14

A maconha fecha os olhos, mas só um pouquinho. Não é completamente um sonho, é trazer um pouco do sonho pro dia. As cores e o estranhamento são de sonho; mas se cair um copo no chão, quebra.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

#14

1maconha, muitas ideias boas mas vc só pensa em comer; 2essas fotos boas que a gente tira pra postar, acaba não postando e se tornam apenas fotos boas; 3redes sociais são como as drogas, nos oferecendo novos mundos que atropelam os antigos; 4 - 5a eterna frustração de lhe faltarem os meios pra expressar uma ideia gráfica  6o que é pior, apagar os rastros pra não evitar uma reputação ruim, ou apagar os rastros e acabar evitando uma reputação ruim?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

#13

Você dedilhou na minha coxa uma melodia que não falava comigo, mas com o filme que assistíamos enquanto eu, comovida com a canção do filme, enchia o olho d'água. Mas bastou eu perceber que queria chorar pra que o choro fugisse de mim com toda velocidade. Sou má atriz.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

#12

Eu certamente sabia de algumas coisas que já esqueci, mas também aprendi novidades. Sei por exemplo que nem todos os junkies são magros, e alguns passam dias sem comer e continuam gordos. Aprendi cores e formatos, cheiros e texturas de partes do corpo de várias pessoas. Sei agora que o rosto de uma pessoa muda quando ela tira a roupa. Descobri muitas coisas que eu gostaria de te contar, e então você me revelaria as coisas que eu sabia antes.

sábado, 28 de janeiro de 2017

#11

Saio de madrugada pra colher folhas de boldo, os olhos-de-boca da rua me reparam. Preparo chás, tinturas, perfume circula em mim: sobe pelas narinas, desce pelos poros. Converso com espíritos de fora e de dentro, faço apelos. Não escolhi ser bruxa, me escolheram.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

#10

  O amarelo anêmico da parede é também a cor da minha pele que tento esconder, constrangida, a untuosas pinceladas de sol. E os grampos de metal que furam a parede também furam minha pele até atingirem o princípio dos meus nervos: eu e minhas paredes somos uma coisa só.

domingo, 22 de janeiro de 2017

#9

A cena é comum: sempre há gin, ou cerveja, ou whisky, e sempre há musica, desde à opereta na pianola ao jazz no toca discos. Sempre há assunto: no seculo XVIII se comenta a queda de algum imperador, no seculo XX se comenta a queda de algum presidente. Os homens na cena são poetas, pintores, dramaturgos, jornalistas. As mulheres são as esposas dos jornalistas, as filhas dos pintores, as amantes dos poetas.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

#8

Budismo Imodesto

Ah! um avião caiu na minha sorte!
Também, dos articulantes da coroa
A criptográfa cúpula se esboroa
Ante o bestificado povo inerte!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

#7

Ainda não li o bastante pra poder descobrir seu nome.

Não sei o que as palavras querem dizer, professo-as como feitiços fáceis, que fazem o açúcar se
mover sobre a mesa, quando muito provocam uma risada.

Você é um milagre para qual não estou pronta. Quem está pronto pros milagres? Eu não.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

#6

 pausei brevemente a poesia pra viver. viver cansa. sonhar é um bocejinho.

domingo, 15 de janeiro de 2017

#5

Construo o palácio de minha ansiedade, jogo um pano vermelho sobre a angústia da saudade de outro anúncio vermelho. A desejável dor de todos os meses.
A melhor amiga de mamãe está na cidade, grávida do quinto filho. "Me passou" graceja mamãe, que teve quatro. O assunto é todo filhos: diarréia, musiquinhas inventadas, "ela canta afinadinha, uma gracinha." Os diminutivos todos do mundo. A disputa sobre a idade das crianças todas do mundo. O terror.

sábado, 14 de janeiro de 2017

#4

tem tanta gente feia no mundo
a desconhecida no onibus porém
é bonita
descarada sem pudor
olho sua boca rosinha
suas sardinhas discretas
e suas largas narinas
seus cabelos de boneca
de zesseis anos de vida
a minha boca entreaberta
(eu nunca tive vergonha)
quer beber a água dela

"o que não tenho e desejo
é o que melhor me enriquece"
quem sou eu senão o que espera?
toda sede, toda tara
daninha, parasitária

#3

Que delícia aprender a sutileza do afeto. Saber aos pouquinhos que o toque mais leve é o que penetra mais fundo. Conhecer bem o desejo de abraçar até ferir, e multilá-lo com calma, como se poda uma plantinha.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

#2


-qual é seu nome?
-Satiê.
-que maneiro, é indígena?
-não, é francês.
...
-muita gente veio pra cá ainda na época do garimpo, muitos místicos. dizem que a cidade tem uma energia diferente porque foi construída em cima de um cristal.
...
-JK foi um visionário. criou o Parque junto com Brasília.
...
-eu moro em Alto, não gosto de vir pra vila em temporada... vim só buscar umas medicinas.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

#1

Voltei ao salão e já era outro. Antes, mal abraçava a cintura, o cavaleiro já saia rodopiando feroz, exibindo a força do seu passo, antes que outro homem tivesse a chance. Agora entro e ninguém nota meu decote bordado, os cavaleiros distraídos conversando entre si, no máximo se desdobra uma dança frouxa. Deixo o baile antes da meia-noite e vou dançar sozinha, uma dança de vigor e ritmo, uma dança de aguda delícia que nenhum cavaleiro faria.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

#0

Pequenina, quando eu via as fotos antigas de mamãe, perguntava se naquela época eu já tinha nascido ou se ela estava grávida de mim. Não fosse o caso uma coisa nem outra, ela dizia que eu estava "no pensamento". Eu sempre soube que fui um gravidez acidental, mas amava a ideia de que, mesmo sem planejar minha chegada, minha mãe me imaginava. Certos textos são assim: nunca chegam a ser embriões, mas vivem sempre no pensamento.